Só faltava o nome para esta escola ser diferente de todas as outras
/Um abaixo-assinado na Change.org virou o jogo e deu a visibilidade que a EMEI Nelson Mandela merecia: eles responderam a pichações racistas com um ensino tolerante e inclusivo
Um sábado ensolarado no meio do inverno paulistano parece que veio para contribuir com a festa. Na quadra da EMEI Nelson Mandela, que fica no bairro do Limão, zona norte de São Paulo, dezenas de crianças dançam, cantam, ouvem histórias e celebram o que foi uma conquista dos pequenos e da diretoria: a mudança de nome da escola, que antes se chamava EMEI Guia Lopes e agora passa a levar o nome do líder sul-africano ícone na luta contra a discriminação e racismo e defensor das causas humanitárias.
A escolha não foi à toa. Mandela, ou "vovô Madiba", como as crianças (todas entre 4 e 5 anos de idade) o chamam, é um patrono da escola, que desde 2011 inclui no seu cotidiano conversas sobre a história africana e a cultura negra. "Não é que temos aulas formais de história. Todo mundo senta e vamos aprender sobre História da África. Não. Existe envolvimento", conta a assistente de direção Deise Regina Ferreira, que está há 13 anos na EMEI. O bate-papo vem com as chamadas "figuras de afeto", bonecos que foram criados, a princípio, para cumprir a função de espantalhos na horta comunitária do espaço.
"Deixamos um dia um espantalho negro lá. As crianças passavam, olhavam, ninguém fazia nada e todo mundo quieto. Aí que eles foram se aproximando e você introduz. Da onde ele veio? Da África. Vamos procurar no mapa? Ele veio da África do Sul. Onde fica? Pega os dois mapas: Brasil e África do Sul. Aí entrou o Mandela. O Mandela entra como o vovô do Azizi", explica a professora. A partir disso, as crianças conversam sobre direitos iguais, conhecem histórias da África, música, poesias e arte africana. Com um sorriso no rosto, Deise se lembra dos debates sobre cor de pele. "Começam os questionamentos: por que o Azizi tem essa cor? Vamos pesquisar? Ah, por causa da melanina. Aí, criou-se uma ação afirmativa: quem tem mais melanina, é o mais negro. Então os negros aqui ficaram se sentido o máximo. Aí o outro 'eu tenho menos, mas não faz mal'", relembra.
ATAQUES RACISTAS
Em 2011, já conhecida na região por incentivar o debate, a criatividade e a tolerância entre as crianças, a escola sofreu um ataque. "Eu fui a primeira que vi. Eu parei e fui lendo a frase de trás para frente. Fiquei alguns minutos parada no meio da rua porque foi um impacto", conta, emocionada, a diretora da EMEI, a pedagoga Cibele Racy. A escola havia amanhecido com pichações racistas em seu muro principal.
O ataque racista motivou mais conversa com as crianças, que discutiram o preconceito no dia dia de suas vidas, e se mostraram chocadas com as pichações. A diretoria decidiu reagir e reafirmar sua luta pelo empoderamento negro. Na Change.org, fizeram um abaixo-assinado que recebeu o apoio de quase 20 mil pessoas durante os cinco meses que a mobilização esteve aberta: "Permitam que a nossa escola se chame 'Nelson Mandela'". Deu certo. Um projeto apresentado pelo vereador Antônio Donato foi aprovado e a EMEI, que antes se chamava Guia Lopes, passa agora a ser conhecida como EMEI Nelson Mandela. "O cotidiano da luta contra o racismo se faz também de gestos simbólicos, e esse é um gesto simbólico muito forte", afirma o vereador, que chegou à festa de comemoração no último sábado, 13, acompanhado da primeira-dama da cidade, Ana Estela Haddad.
A petição, além de impulsionar a mudança, ainda gerou alguns efeitos inesperados. A pequena Eloisa Rosa, de cinco anos, começou a estudar na EMEI Nelson Mandela em 2016. Ela e seus pais gostam tanto da instituição que chegaram a ficar até duas horas por dia no transporte público para que a menina possa aprender e celebrar suas raízes africanas. "Conheci mais a escola pelo abaixo-assinado que uma colega compartilhou. A partir do abaixo-assinado, eu comecei a acompanhar a escola pelas redes sociais. Depois um dia viemos aqui conhecer o espaço. A gente encontrou na escola uma continuidade da formação que damos para ela em casa, tem uma proposta pedagógica que vem ao encontro dos valores e conhecimento que a gente quer que ela tenha", conta Clélia Rosa. Seu marido, o fisioterapeuta Alexandre da Silva, completa: "A gente fica mais tranquilo. Tentamos fugir um pouco do que é comum em uma 'escola de resultados'. Aqui, não. Aqui o cidadão vem à frente", diz.
O sábado de festa mostra o resultado desse projeto pedagógico e do engajamento: alunos, ex-alunos, pais, professores e membros da comunidade se reúnem para celebrar uma vitória contra a intolerância e contra o racismo. As crianças prestam homenagem ao vovô Madiba e a EMEI Guia Lopes, que uma vez sofreu ataques racistas, agora aparece como um centro de resistência e valorização da luta contra intolerância. Agora é a EMEI Nelson Mandela.
"Esse é o nosso trabalho: trazer referências positivas da negritude"
Conversamos com a educadora Cibele Racy, que há 11 anos é diretora da EMEI.
Como foi montar esse projeto educacional que valoriza a cultura e história africana? De onde surgiu essa iniciativa?
Nos primeiros anos a gente trabalhou com diversidade, mas de uma forma superficial e sem foco. Em 2011, a diretoria municipal de educação nos lançou o desafio de introduzir a lei 10.639 [que determina o ensino de cultura afro-brasileira e indígena nas escolas]. A gente iniciou esse processo ainda titubeando. Através de brincadeiras, de música.
Em 2011, houve a pichação racista. Qual impacto ela teve na senhora e no corpo discente?
Foi horrível. Foi uma coisa estranha porque eu fui a primeira que vi. Eu parei e fui lendo de trás para frente. Na hora cheguei no meio do quarteirão, parei o carro e consegui ler. Fiquei alguns minutos parada porque foi um impacto. Apesar de a gente saber do racismo, que existe na sociedade… uma escola ser alvo do crime de racismo é algo muito sério. Eu voltei pra casa num misto de indignada, assustada e tudo mais e chamei as professoras para pensar no que a gente ia falar para as pessoas. Aí abriram-se os portões na segunda-feira e todas as crianças já estavam sabendo o que estava escrito porque as famílias tinham visto e se indignaram. As próprias famílias comentaram o que era, como era absurdo e agressivo. A partir daí a gente começou na escola a discussão sobre por que alguém tinha escrito isso.
Como foi explicar para as crianças o que aconteceu?
A gente explicou a suástica, contou a história. E aí a partir disso, da existência de um símbolo como esse, a gente introduziu a simbologia africana, que trata da harmonia, da natureza, da perseverança. São símbolos que têm outros significados. É o que a gente chama de ação afirmativa: pegar a ideia negativa e transformar numa coisa muito maior, de maior valor. As crianças têm sua baixa autoestima porque tudo que chega do continente africano é negativo: fome, miséria. A gente se esquece de contar o outro lado. E esse é o nosso trabalho: trazer referências positivas da negritude.
A senhora tocou em um bom ponto, a questão da autoestima da criança negra. Como isso é trabalhado na escola?
Não adianta você querer convencer outra pessoa que um tipo de cabelo não é ruim de uma hora para outra. Ela recebe mensagens o tempo inteiro. Então a primeira coisa que a gente faz é trazer referências. O canto da beleza é um deles (foto). A gente faz o dia do cabelo solto. Aí você percebe o quão libertador é para essas crianças soltar o cabelo. Até porque as próprias mães prendem, amarram, esticam, puxam. A gente tem dia de pintura corporal. Sempre por uma série de características. Primeiro você traz referências do que é belo e discute o que é belo para depois desconstruir algumas verdades absolutas. É um processo lento e cuidadoso, as emoções delas podem ficam à flor da pele e elas contam, se emocionam, lembra o seu sofrimento. E criam um vínculo de confiança com a escola, que se torna um território de resistência. Além disso, o número de famílias aceitando a beleza negra dos seus filhos é uma coisa absurda. Fora o impacto com os professores. É impossível você passar um ano na Nelson Mandela e sair do jeito que entrou.